Aprovado na votação final global, o Orçamento de Estado para 2022 em sede de especialidade teve em cima da mesa das discussões o tema das criptomoedas, com o Bloco de Esquerda a propor que os ganhos com estes ativos digitais fossem tributados em IRS como qualquer outra mais-valia.
Apesar de não ter sido aprovada, esta proposta trouxe para a atualidade o tema da regulamentação deste tipo de valores, tanto mais que o ministro das Finanças, Fernando Medina, já fez saber que Portugal está a trabalhar na adaptação da legislação e da tributação para abarcar as criptomoedas.
O tema levou-nos a fala com Henrique Corrêa da Silva, Presidente do Instituto New Economy, uma associação sem fins lucrativos que agrega líderes de indústria, profissionais e cidadãos interessados em promover a participação de Portugal na nova economia digital:
São boas notícias para os investidores de criptoativos, a rejeição da proposta do Bloco de Esquerda de tributar criptomoedas?
Henrique Corrêa da Silva (HCS): Sim. A proposta do Bloco tinha dois problemas: era simplista e inexequível, o que demonstra o seu desconhecimento sobre esta tecnologia e sobre a complexidade da criptoeconomia. Por isso, aplaudimos a visão do governo e dos partidos que votaram contra, pois a aprovação de um regime apressado seria prejudicial para o país. Devemos terminar o estudo em curso de forma a salvaguardar os benefícios que este setor tem trazido para Portugal, notando ainda que todos os empreendedores e profissionais de indústria com quem temos falado querem que exista um regime de tributação claro e justo. Sabemos que a certeza fiscal é importante para o desenvolvimento sustentável de qualquer crypto hub.
“A aprovação de um regime apressado seria prejudicial para o país”.
Esta votação traduz-se na continuidade do atual “statuos quo” que coloca Portugal como um paraíso fiscal de critptomoedas. Nesse sentido, depreende-se que o seu impacto seja nulo, já que não representa qualquer novidade? Ou tem algum impacto esta votação?
HCS: “Paraíso fiscal” é um termo que não deve ser utilizado, quer pelo seu teor pejorativo, quer porque não espelha a realidade factual. Em Portugal, qualquer empresa da criptoeconomia (ou trabalhador na mesma) paga impostos como em qualquer outra atividade. Só não se pagam mais valias a nível de IRS e por causa de uma lacuna, não de uma política concertada para beneficiar esta indústria. Em todo o caso, o impacto da votação foi positivo para o setor em Portugal porque a nível internacional os media andavam a reportar os últimos desenvolvimentos sobre esta matéria de uma forma confusa, e agora temos alguma claridade. Também foi bom ver que o governo não cedeu a provocações políticas e optou por abordar este assunto de forma séria e com uma visão de longo-prazo. Aliás, esperamos ainda que esta matéria venha a ser enquadrada no projeto da estratégia nacional de blockchain. Embora a tributação seja apenas uma pequena parte de tal estratégia, é importante preparar legislação para a criptoeconomia de forma holística.
“É importante preparar legislação para a criptoeconomia de forma holística”
O Bloco de Esquerda, que apresentou a proposta, aponta o risco dos criptoativos poderem ser meios de crime financeiro ou fuga fiscal em Portugal. Concorda que este cenário existe? Que comentário faz?
HCS: Não, a tecnologia blockchain, pela sua natureza pública, transparente e escrutinável por qualquer pessoa com acesso à internet, é um meio que não facilita o crime. Aliás, temos dados fidedignos que provam o contrário, como o último relatório da Chainalysis sobre a criminalidade nesta indústria em 2022 mostra: 0.15% das atividades na blockchain no ano passado tiveram origem ilícita. Infelizmente, é comum apelar-se ao medo e esta narrativa simplista é recorrente, especialmente da parte dos incumbentes do atual sistema financeiro. É curioso que o Bloco repetiu até algumas frases usadas por CEOs de Wall Street no passado para denegrir a concorrência da blockchain.
A nível europeu, quais são as práticas nos diferentes países a respeito da tributação de criptoativos?
HCS: Por enquanto não há qualquer harmonização, embora a eurodeputada Lídia Pereira esteja a trabalhar numa proposta nesse sentido, que até já foi referenciada pelo nosso ministro das Finanças. Entretanto, temos vários enquadramentos diferentes, a maioria extremamente complexos e onerosos já que há vários impostos associados às diferentes atividades de mineração, trading, staking, câmbio, entre outras. Em todo o caso, destaco alguns regimes notáveis a nível de mais-valias individuais. Na Bélgica também não se taxam mais valias de criptoativos se estas não forem oriundas de atividade profissional ou especulativa, por exemplo, se forem investimentos de longo-prazo sem atividade de trading envolvida. Na Alemanha, foi agora aprovada uma isenção equivalente caso os criptoativos sejam vendidos após um período de um ano. No Luxemburgo esse período é de apenas seis meses. E no próximo mês, o parlamento esloveno vai votar uma proposta, que deverá ser aprovada, que isenta mais valias destes ganhos até €10.000 e, acima deste montante, irá sujeitar os ganhos com criptoativos a uma taxa de apenas 5%, o que é extremamente competitivo.
Até quando será possível não tributar este tipo de ativos digitais?
HCS: Como referido, é um mito que os criptoativos não são tributados em Portugal. Só não são tributadas as mais-valias a nível individual, mas esta é uma pequena parte da criptoeconomia, que decorre sobretudo a nível organizacional e empresarial, que sempre foi taxado em Portugal. De qualquer forma, a esmagadora maioria da comunidade cripto e web3 em Portugal é favorável à tributação das mais valias e ao desenvolvimento de um regime bem estudado que favoreça o desenvolvimento do setor. Acreditamos que a tributação, se for feita de forma simples, inteligente e competitiva será benéfica para esta indústria e atrairá ainda mais empresários e talento para cá, criando riqueza e acumulando conhecimento e know how em Portugal como já não temos desde os Descobrimentos.
“Acreditamos que a tributação, se for feita de forma simples, inteligente e competitiva será benéfica para esta indústria”
As tecnologias disruptivas associadas à blockchain não se encaixam nos regimes existentes, e por isso não devemos tentar “forçar” a criptoeconomia para dentro da legislação existente. Sabemos que devemos adaptar a legislação na tradição do pensamento legal existente, mas devemos também ter em conta a complexidade deste novo paradigma das finanças abertas, também conhecido como DeFi, ou Open Finance. Em resumo, Portugal tem uma excelente oportunidade de liderar neste sentido, e o Instituto New Economy está a organizar uma conferência em Lisboa, este novembro, que agregará developers, juristas e legisladores de toda a Europa para discutir como é que a Europa e o nosso país podem melhor construir o futuro desta nova economia digital.